Esperto demais se atrapalha


Eu trabalhei no comércio durante 16 anos e metade deles passei em uma loja de autopeças no bairro da Gávea, zona sul da cidade do Rio de Janeiro. O ponto era muito bom, a loja ficava na esquina das principais ruas do bairro e o movimento de carros era perfeito para vendas na porta. O produto principal da empresa era a venda de baterias de automóveis e caminhões. Fornecíamos também o produto no atacado, com pagamento faturado. Como todo produto que se vende, sempre há aqueles que não pagam de esperteza e não é porque estão em dificuldades financeiras.
Quando você já tem muitos anos de firma, uma convocação para cobrir férias de outros funcionários é certa, pois desta vez foi o gerente que precisava voltar para terra natal, que ficava do outro lado do oceano: Portugal. Há muito tempo que o gerente não via os pais e irmãos, então resolveu nas férias matar a saudade. O dono da empresa me chamou na sala dele e disse sem rodeios:
Edson, você vai ficar no lugar do gerente e o Fábio (afilhado dele que já trabalhava comigo na filial da zona sul) vai ajudá-lo neste serviço. Tudo bem?
Tudo bem! Quando começo?
Amanhã cedo!
Eu sabia que minhas folgas de sábado tinha ido para o espaço e lá ficariam por trinta dias. Para ser mais exato, quatro finais de semana. Um mês costuma passar rápido, mas este seria o mais lento de todos, pois o gerente antes de partir, me deixou um abacaxi para descascar, como se diz no comércio, quando se têm vários problemas a resolver.
Tem várias cobranças a fazer – disse ele, me mostrando um bolo de papéis com anotações rasuradas, que nem o próprio entendia o que estava escrito ali. – Esquece este, ele pagou na semana passada... Este... Quem é este, ô pá?
Se você não sabe, eu vou saber?
Ah! Este já pagou também... O que ele está fazendo aqui no bolo dos pendentes?
Deve estar fazendo uma visitinha, para ver os amigos de longa data.
Você é muito engraçadinho!
Você me fez uma pergunta e eu o respondi da melhor maneira possível. – Eu tinha essa liberdade, pelo motivo da convivência com ele nos últimos oito anos ali na loja.
Cá estão os que devem a firma... Este aqui... – disse ele, puxando um papel grampeado com outros papeis de pedidos de material. – faz dois meses que ele não paga.
Essa não é do Pereira da Casa Mota Autopeças?
Este mesmo!
Ele era o cara que mais devia no bairro, todo mundo que fornecia para ele, suava para receber um centavo do indivíduo. A firma dele dava lucro e vendia muito, não tinha como não ter dinheiro para pagar aos credores. Mas não, cismava em dar dor de cabeça aos outros nos dias de pagamento de fatura. O tal do Pereira era arisco, tinha a habilidade de dizer que não estava na firma com a maior cara de pau. Quer dizer, ele mandava os outros falarem no lugar dele.
O que vamos fazer? – perguntou-me Fábio, no primeiro dia sem o gerente, que naquele momento estava na ponte aérea Rio-Lisboa com um sorriso estampado no rosto e respirando aliviado por ter passado o tal “abacaxi” para as minhas mãos. O pior de tudo que a “faca”, que ele tinha me dado para descascá-lo, estava mais cega do que o Mister Magoo, não dividia nem tablete de manteiga derretida.
Vamos começar pelo mais fácil e depois vamos ver este tal do Pereira.
Isso vai ser muito ruim!
Eu sei, mas não tem escolha... Toma! Pegue o carro e passe por estes clientes que eu vou pensar em algo.
Fábio pegou o bolo de papéis de cobrança, entrou no carro e partiu em direção aos devedores. Eu fiquei com apenas um na mão, aquele que seria bastante difícil de receber.
Como vou resolver isso? Diga-me papel? – disse eu, desafiando minha própria inteligência.
Fábio saiu na parte da manhã e só voltou as três e meia da tarde, com vários cheques e dinheiro nas mãos. Ele foi bem sucedido, todos que deviam pagaram religiosamente bem, sem atrito ou confusão.
Você almoçou?
Não!
Então, vá comer algo, que temos uma missão muito importante para resolver.
Fábio se alimentou, descansou um pouco e foi a minha vez de fazer a cobrança. A loja do tal Pereira era exatamente a dois quarteirões da nossa.
Quer que eu vá lá de carro?
Não! Primeiro vamos ligar para ver se ele está lá!
Mas, ele irá dizer que não está.
Ligue e preste a atenção se alguém fala no fundo orientando a atendente.
Está bom! – disse ele, discando e falando com a loja do Pereira. Como havíamos desconfiado, ele estava lá, mas mandou alguém falar no lugar dele.
Me dê o telefone! – eu disquei para ele como se fosse um cliente e ele atendeu e me disse que estava me esperando.
Safado! Para nós, ele não está!
Faça o seguinte... Eu vou atravessar a rua, em direção à loja dele, quando eu chegar lá, você me dá dez minutos e ligue novamente cobrando, certo?
Certo!
Acertamos os nossos relógios e eu fui até a loja do Pereira caminhando. Quando cheguei lá, ele se encontrava do lado de fora do balcão de costas para rua olhando para a atendente. Me aproximei, fiquei praticamente atrás dele e esperei o telefone tocar como combinei com Fábio. Na hora exata, em que o telefone tocou, ele disse a funcionária:
Se for o pessoal da cobrança da loja da Gávea, diga que eu não estou.
Não precisa ter esse trabalho senhor Pereira, pois estou aqui para provar que o senhor está presente... Então? Como vamos resolver as suas dívidas? – disse-lhe eu, jogando os papeis diante dele, que por sua vez, levou um baita susto.

Conclusão, eu quase matei o homem do coração. Ele, com um sorriso amarelado, me pagou tudo com juros e a nossa firma nunca mais teve problema de cobrança com o tal do Pereira.

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